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segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Entramos na era pós-racial

A vitória de Obama é a concretização do sonho. Mas ela não aposenta a discussão sobre a questão racial


"E ENTÃO, EU cheguei a Memphis. E alguns começaram a dizer que havia ameaças. O que alguns irmãos brancos doentes poderiam fazer comigo? Bem, eu não sei o que vai acontecer agora. Temos dias difíceis pela frente. Mas não me importo mais. Porque eu estive no topo da montanha. E eu olhei lá de cima. E eu vi a Terra Prometida. Eu posso não chegar até ela com vocês. Mas eu quero que vocês saibam que nós chegaremos à Terra Prometida."
Martin Luther King Jr. proferiu essas palavras em discurso, em Memphis, no Tennessee, no dia 3 de abril de 1968. Menos de 24 horas mais tarde, ele seria assassinado por um "irmão branco doente".
Passados 40 anos, o homem mais respeitado do mundo é o negro Nelson Mandela e o presidente eleito dos Estados Unidos, um negro de nome esquisito (ao menos para os padrões norte-americanos), Barack Hussein Obama.
Nas ruas do Rio, os camelôs já oferecem camisetas com a imagem do novo líder. Nos cartórios da África, da Índia e da Indonésia escrivães já se acostumam a inscrever o nome do presidente eleito em certidões de nascimento. E, na Inglaterra, a comemoração foi dupla por conta da vitória do negro Lewis Hamilton na F-1, esporte dominado por brancos.
O negão está na moda, o negão está no topo do mundo! Em uma América que vem sendo definida como pós-racial, até quem sempre odiou os negros agora minimiza o fator raça. Questionado sobre a cor da pele de Obama, David Duke, o infame ex-membro do Ku Klux Klan, afirmou: "Não vejo muita diferença entre Hillary, McCain e Obama".
A Terra Prometida imaginada por Martin Luther King Jr. está ao alcance da mão. O pastor, ativista e Prêmio Nobel da Paz dizia que as divisões de raça nos EUA só seriam transcendidas no dia em que um negro fosse eleito presidente. Com a vitória do democrata, o negro passou de coadjuvante a protagonista principal do sonho americano.
Barack Obama foi um candidato "daltônico" e conciliador que fez questão de não enxergar a cor do eleitorado. Mas, não fosse a crise econômica, a campanha "ecumênica" de Obama teria sido vitoriosa? Que papel sua negritude terá jogado na eleição? Apoiadora de Hillary e candidata a vice na eleição de 1984, a democrata Geraldine Ferraro fez uma afirmação recalcada sobre o assunto durante as prévias. Disse que, "se Obama fosse um homem branco, ele não estaria nesta posição. E se fosse mulher (de qualquer cor) também não estaria nesta posição". Seja como for, já estava mais do que na hora de os EUA tomarem vergonha na cara sobre a questão racial, que para eles conta com o requinte extra de dividir caucasianos entre "brancos" e "latinos".
A trajetória de Barack Obama rumo à Casa Branca é a concretização de mais uma etapa do sonho de Martin Luther King Jr. Mas daí a achar que ela aposenta a discussão racial nos EUA vai uma légua e meia.
É "wishful thinking", excesso de otimismo, falar em era pós-racial quando a obscena maioria da população carcerária nos EUA é composta por negros. E quando as atrocidades cometidas pelo governo Bush com a população negra de Nova Orleans, após a passagem do furacão Katrina, ainda são uma ferida exposta para o mundo inteiro ver.

BARBARA GANCIA para Folha de São Paulo (07/11/2008)

barbara@uol.com.br
http://www.barbaragancia.com.br/

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