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quarta-feira, 23 de maio de 2007

Entrevista com José Saramago- 1ª parte- No Jornal da Globo

Segunda-feira, 21 de Maio de 2007

Entrevista com Saramago – primeira parte

José Saramago, o maior autor de língua portuguesa ainda vivo, escolheu uma ilha como seu mundo. Há 14 anos, Saramago vive num auto-imposto isolamento num arquipélago diante da costa da África – de onde lança sua voz crítica a sociedades, governos e governantes.
O Jornal da Globo exibe na segunda e na terça-feira a entrevista feita por Edney Silvestre com José Saramago – que pela primeira vez recebeu uma equipe de TV brasileira em seu refúgio, na ilha de Lanzarote.
Uma ilha no meio do Oceano Atlântico, em frente ao continente africano, varrida por ventos que nunca se calam. É uma paisagem que parece a superfície da lua: árida, negra, acentuada pela explosão de vulcões, há pouco mais de 200 anos; até hoje ainda há fogo sob a terra. Mas a vida surge, mesmo neste solo.
Essa é Lanzarote, uma das Ilhas Canárias. Pertence à Espanha, mas a Europa fica a mais de mil quilômetros; a África, a apenas 100 quilômetros. É lá que vive desde 1993 o único autor de língua portuguesa premiado com o Nobel de Literatura, José Saramago.
Ao receber o prêmio, um dos maiores intelectuais da atualidade emocionou falando do avô, Jerônimo, e da avó, Josefa – os dois analfabetos. “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever....”, ele disse na época.
A mãe, Maria da Piedade, também não sabia ler nem escrever. “Lembro-me dela a sair de casa para lavar uma escada que tinha três ou quatro andares, com o balde, com o sabão e com o esfregão e a escova, escova dura para raspar. Era assim”.
Saramago teve mãe faxineira, pai guarda-civil e avós criadores de porcos. O único irmão, Francisco, morreu aos quatro anos. “A minha relação com a minha infância,que já podia estar esquecida ou transformada em outra coisa, se eu pudesse repeti-la, repeti-la-ia exatamente como foi: com a pobreza, com o frio, com a pouca comida, com as moscas e os porcos e com tudo aquilo”, diz. “Eu não quero cair, enfim, nesta coisa do miserabilismo: ‘eu fui pobre, eu fui pobre, eu fui pobre’”.
José de Souza Saramago foi estudar em escola técnica, e tirou diploma. “Saio serralheiro mecânico e exerço como serralheiro mecânico numa oficina de automóveis, rodando válvulas, reparando motores e coisas assim”, ele conta. Mas diz que hoje ainda não é capaz de consertar um carro. “Hoje não, porque eu não sou quem era, mas também o automóvel também não é quem foi”.
O ex-mecânico construiu uma carreira excepcional. “Não houve uma força superior que olhasse pra mim e dissesse: ‘bom, vou te preparar uma vida muito bonita’. Não, não, não. Agora, é uma vida que não podia ter sucedido, em termos de pura lógica", reconhece.
Nossa entrevista foi gravada na grande biblioteca do homem que sequer tinha dinheiro para comprar livros.
O comunista, racional, fala da transformação trazida pela paixão por uma mulher. “A minha vida não seria aquilo que é hoje, não teria essa biblioteca se eu não tivesse conhecido a Pilar”, ele diz.
Quando se conheceram, Saramago tinha 63 anos, e Pilar Del Rio, 36. “Os meus amigos diziam: ‘vê lá o que vais fazer e tal, isso é perigoso’ e tal”.
Pilar nunca tinha ouvido falar em Saramago. Leu o romance “O Memorial do Convento”. “A cada página, eu voltava atrás para certificar-me: é um contemporâneo. Aí, tinha a percepção de que estava diante de um clássico. Este homem tem um olhar sobre o mundo absolutamente moderno, absolutamente contemporâneo”, conta Pilar.
Em Lisboa, aconteceu o primeiro encontro, a atração – a princípio, intelectual: os dois apaixonados pelo poeta Fernando Pessoa e pelo marxismo.
Seis meses depois, houve o reencontro em Sevilha, às 4 da tarde; a hora está registrada em vários relógios da casa em Lanzarote. “E aí começa realmente a minha segunda vida. Porque com 63 anos, o que é que se espera que aconteça? Já não muita coisa", explica Saramago. Os dois estão juntos há 21 anos. Vivem, com simplicidade, em uma ilha longe do mundo.
Mas Saramago está sempre atento – e crítico – às mudanças da história. “A globalização é um totalitarismo. Totalitarismo que não precisa nem de camisas verdes, nem castanhas, nem de suásticas. São os ricos que governam, e os pobres vivem como podem. Então, isto tem aspectos totalitários de fato, porque se tu controlas a economia mundial, os movimentos do dinheiro, a circulação dos bens, de uma certa maneira também controlas a circulação das pessoas, que é o que está a acontecer”, analisa.
Num pequeno escritório com vista para o oceano, Saramago escreve. Diariamente. Mesmo durante os meses da doença recente, continuava escrevendo; ele teve um espasmo gástrico que provocava soluços – às vezes a cada três segundos. E se curou, imagine, com goles de vinagre. “Imagina o vinagre descendo pela garganta abaixo? Era dinamite", ri.

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